A definição de um teto máximo ao endividamento por parte do Estado, mais até do que a definição de um limite ao défice orçamental, será um dos temas mais controversos de qualquer reforma do Estado.
No documento publicado pelo governo aparece a referência à chamada «regra de ouro» (ponto 1.5 do documento) mas fica desde logo perceptível que o governo tem muito pouca convicção na exequibilidade desta proposta, pelo menos a nível constitucional.
Genericamente, podemos dizer que a «regra de ouro» pode assumir diferentes formas (isoladamente ou em conjunto): por um lado definir um valor máximo de endividamento por parte do Estado, nominal ou em percentagem do PIB; por outro lado definir um limite ao défice orçamental, podendo este ser determinado em percentagem do PIB ou, por exemplo, em função do crescimento. Naturalmente que existem diversas outras formas. Mas como exemplo penso que estas serão as mais adequadas.
Aparentemente, faz todo o sentido colocar travão ao endividamento do Estado e ao défice orçamental, em especial quando nos últimos anos temos passado por tantas dificuldades.
Então, porque é que este assunto não é consensual?
Então, porque é que este assunto não é consensual?
Uma das razões mais lógicas é que ao definirmos um limite ao endividamento e ao défice estamos também a limitar instrumentos ao Estado para intervir na economia e na sociedade, particularmente em situações de crise, como a que agora vivemos. vamos ver um exemplo simples: se é completamente verdade que, existindo um limite ao endividamento e/ou ao défice orçamental nunca teríamos chegado à situação em que nos encontramos, também é completamente verdade que se hoje colocássemos (e tentássemos cumprir) um limite ao endividamento ou um limite ao défice orçamental, os sacrifícios seriam muito mas muito maiores (para não dizer já impossíveis).
Outra razão lógica é que o Estado não pode ficar totalmente refém de um orçamento e de uma disciplina financeira. A contabilidade no Estado não se faz como as contas de merceeiro, entre o deve e o haver. Ou melhor, a equação básica até poderá ser esta, mas com muitas particularidades e condicionantes, até porque existe dívida boa e dívida má. O Estado ao gastar a mais pode estar na realidade a ajudar a melhorar toda a economia e a sociedade (ou seja, todos nós), por isso a leitura nunca é simplesmente contabilística.
Um exemplo concreto que deverá ser consensual:
acontece uma epidemia ou uma catástrofe - o estado tem de intervir, gastar o que for necessário, mesmo que isso implique quebrar todos os limites e restrições orçamentais.
acontece uma epidemia ou uma catástrofe - o estado tem de intervir, gastar o que for necessário, mesmo que isso implique quebrar todos os limites e restrições orçamentais.
Um exemplo concreto muito menos consensual:
a economia externa sofre uma crise - o estado deve puxar pela economia interna para não a deixar afundar, promovendo investimento que minimize o impacto da crise exterior e limite os riscos de contágio.
a economia externa sofre uma crise - o estado deve puxar pela economia interna para não a deixar afundar, promovendo investimento que minimize o impacto da crise exterior e limite os riscos de contágio.
Pessoalmente acredito ser fundamental a definição de limites quer ao endividamento quer ao défice orçamental, por diversos fatores:
- Estamos inseridos num mercado de escala internacional (União Europeia) e temos uma moeda partilhada (Euro). Isso trás muitas vantagens mas também acarreta responsabilidades. Podemos sempre discutir o tema, mas estarmos na moeda única é um benefício, uma responsabilidade e um problema.
- Existirem limites deste género fazem naturalmente desaparecer (ou elo menos diminuir) variados riscos de quebra de confiança e de especulação, principalmente de investidores externos.
- Limites bem definidos impedem (ou condicionam) megalomanias eleitoralistas político-partidárias, obrigando a uma disciplina financeira muito mais rigorosa.
- Analisando especialmente a médio e longo prazo, a definição de limites e restrições orçamentais estará a salvaguardar o futuro dos nossos filhos e netos, não lhes deixando um legado insustentável para eles pagarem.
Acredito também que o Estado não pode ficar totalmente refém destes limites e que devem existir mecanismos que permitam, excecionamente, ultrapassar os mesmos em situações de necessidade.
Estou convencido que inscrever um limite máximo ao endividamento de 60-70% do PIB na Constituição e um limite máximo ao défice orçamental na Lei de Enquadramento Orçamental seriam passos acertados para um Estado mais consistente e menos oneroso.
Teria de ficar previsto igualmente na Constituição a possibilidade do Estado poder ultrapassar durante um curto prazo este limite para atender a situações de calamidade ou defesa de soberania, por exemplo, para além do mesmo poder ser igualmente ultrapassado temporariamente por decisão referendada pelos Portugueses.
Já a Lei de Enquadramento Orçamental deveria prever um limite máximo de 2-3% para o défice orçamental e estabelecer igualmente limites para o número de anos consecutivos que se poderia ter défice, findo os quais deveria ser necessário a existência de pelo menos um ano com saldo positivo, para que, a médio e longo prazo, não voltem a acontecer situações como a que vivemos atualmente.
Claro está que quer a Constituição quer a Lei de Enquadramento Orçamental poderão sempre ser alteradas, se determinadas circunstâncias assim o exigirem. Mas isso não é necessariamente mau.
Por outro lado, estou absolutamente convencido que esta discussão deveria ser a última etapa da reforma do estado e não, como parece ser a vontade política, a primeira ou uma das primeiras. Enquanto não definirmos claramente que tipo de Estado queremos é impossível estabelecer cenários micro e macroeconómicos que nos indiquem quais os valores e/ou limites a definir, muito menos quantificá-los.
Vamos imaginar este cenário teórico: os Portugueses decidiam ter um Estado onde tudo seja gratuito`para os cidadãos porque tudo será sempre pago pelos impostos, podendo estes subir e descer livremente em função das necessidades do orçamento de estado. Não havia qualquer problema em ultrapassar os limites, porque no ano seguinte o Estado aumentava as taxas e os impostos por forma a corrigir o desequilíbrio do ano anterior.Claro está que na vida real isto não seria nada assim, porque há limites máximos para o aumento de impostos, etc..., mas acho que se percebe a importância de definir primeiro que estado queremos e podemos ter para depois definirmos que limites e restrições devem ser aplicados ao Orçamento de Estado.
Acresce ainda que neste momento, com um défice que anda nos 6% (e andará) e com uma dívida pública superior a 125% do PIB, inscrever na Constituição ou na Lei de Enquadramento Orçamental qualquer limite ou restrição apenas faria sentido se pensada a 5-10 ou mesmo 15 anos.
Também entendo que enquanto não se definir claramente que Estado pretendemos não será possível identificar as situações em que o papel do Estado terá sempre de falar mais alto que as suas finanças.
O melhor dos mundos seria aguardar por um crescimento económico de 2-3% ao ano, uma dívida pública abaixo dos 60% e um superavit no orçamento para se estabelecerem esta (ou estas) regra(s) de ouro. Mas teremos muito tempo para discutir esta matéria até que estas condições se proporcionem. Infelizmente para nós e para os nossos filhos e netos...
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